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Composição não é para poucos

Dentre todas as atividades musicais, a composição é frequentemente vista como a mais denotativa de saber musical. “Tocar bem” é normalmente aceito como um processo mais subjetivo, às vezes associado à ideia de talento. Mas compor parece que já é outra história, isto é, não dá para criar uma música se você não sabe mesmo de música. Mutatis mutandis, é como aquele velho ditado: para escrever um livro, você precisa antes ter lido mil.

Mas será que é assim mesmo?

A associação da composição com um saber musical não-imediato, teórico, conceitual, parece inevitável quando você faz uma cadeia de raciocínio mais ou menos assim:

  1. Quero fazer uma música, digamos, uma canção,
  2. Ok, então preciso de uma base para isso, por exemplo, uma progressão de acordes sobre a qual cantar uma melodia
  3. Tá, mas daí tenho que saber de harmonia, como se montam os acordes e como posso colocá-los em sequencia, além de fazê-los soar bem nos instrumentos que os tocarão,
  4. Putz, mas daí vou ter que aprender a ler partitura, pois o ensino teórico de harmonia geralmente vem mediado pela notação,
  5. Mas até eu aprender bem tudo isso, e ainda por cima usar de forma eficiente para fazer uma música que eu goste… mmm, acho que é melhor continuar tocando ou cantando e deixar essa parte para mais adiante, quando tiver mais conhecimentos teóricos através da minha prática.

Eu bem sei que ninguém faz um monólogo desses por extenso, tipo falando sozinho na frente do espelho. Porém, desconsiderando essa explicitação exagerada, a ideia resultante não soa mais ou menos verossímil? Se sim, imagina que a pessoa, ao chegar no ponto 5., acaba no mesmo lugar em que começou, ou seja, sem compor! Definitivamente, esse não é um bom método para se começar a compor, pois coloca coisas demais entre a vontade da pessoa – esse impulso mágico que nos acende a imaginação – e o fato de colocar a mão na massa e efetivamente começar a moldar algo no mundo.

E como tornar isso real?

Bem, para começar, podemos refletir um pouco mais sobre o “tocar”, para ver que ele também envolve um monte de conceitos e teoria, e quem sabe entender que ele não é tão distante do “compor”.

Quando você toca música, faz um instrumento soar ou aciona a sua voz, mesmo que não tenha muita ideia das “notas” envolvidas ou de sua relação, nem de estruturas e coisas do tipo, você está trabalhando pesado em vários quesitos essenciais e altamente complexos do fazer musical. Para variar um pouco do piano, que é o centro da Comunidade Piano Class, suponhamos que nós tocamos violoncelo: vamos produzir uma nota, sentimos o contato do arco com a corda. Imagine-se nessa situação. Com o ouvido bem próximo ao instrumento, e com as vibrações transmitidas ao corpo, você sente que a pressão da mão direita sobre o arco interfere enormemente no som; ouve que a posição do arco na corda torna esse som mais áspero ou mais opaco; ouve que deitar um pouco o arco também gera muita diferença, e que se encosta um pouco da madeira tira uma carga de ruído maior. Tudo isso liga infinitos movimentos com infinitos tipos de som, todos eles em ação ao mesmo tempo, em transformação constante. E o nosso corpo responde a isso: aos poucos, sentimos o pulso do som e os ombros, por exemplo, dançam; a cabeça se inclina com o som que se prolonga. Começamos a ter o nosso jeito de responder ao jeito de tocar, começamos a pensar sobre essas coisas e a gostar de defini-las; ouvimos outras pessoas tocando e nos identificamos ou não com os seus jeitos. Em suma, mesmo sem usar absolutamente nenhum termo de teoria da música, e mesmo que talvez não tenhamos ideia de conceitos consensuais sobre isso, estamos teorizando a nossa prática e praticando a nossa teoria, constante e indistintamente.

A essência da composição musical é a mesma essência de muitas outras coisas na vida, como aquela de tocar o violoncelo. No instante em que sua imaginação deslancha, você tem um jogo de muitas coisas, muitas mais do que consegue racionalizar, e muitas mais do que o próprio som, pois brincar com o som se mistura com seus desejos, sua visão de mundo, seu gosto pela organização e pela transgressão das coisas. Você não precisa de uma partitura para isso. Também não precisa de ferramentas tecnológicas mais contemporâneas, como um software com sequenciador digital ou similar. Essas coisas são somente suportes para composição musical: é legal aprender a usá-las e ver como potencializam sua imaginação. Mas não se esqueça que o jogo da composição musical é com o som, e o som está em tudo. Enquanto você lê isso, se prestar atenção, vai ouvir muitos sons ao seu redor. Você pode produzir outros de forma intencional e, ao jogar, com os sons, você está compondo.

Pense numa criança que inventa músicas, cria ritmos ao bater com coisas, ou cantarola canções que não existem. Pense talvez nas coisas que você mesmo faz. Eu, desde que me conheço por gente, jogo com sons todos os dias, às vezes até sem querer. Pois essa é a essência da composição, e, sob essa perspectiva, todas as pessoas deveriam compor música sem travas. Se você está aprendendo um instrumento musical, então, nem se fala! Ainda que toque somente uma nota, ou recém aprendeu como segurar o arco do violoncelo, para retomar nosso exemplo de antes. Você pode fazer música boa com isso, e não deveria esperar até aprender “algo mais concreto” para compor e, principalmente, saber que está compondo.

Experimente!

Nada há de definitivo no mundo dos sons, e compor música é jogar com os sons que se tem à mão, portanto esperar algo concreto pode ser uma quimera de uma vida inteira. Se você travar sua imaginação porque não se sente capaz de compor, não poderá chegar à plenitude da criação musical, que é o momento de fazer as suas composições (os seus jogos) com os seus amigos ou com o seu público, mostrar a eles o seu universo e participar do universo deles.

Em suma, não importa quantas coisas você sabe sobre música, sobre sua história e suas práticas. A composição musical, em sua essência, não tem a ver com isso. Então, talvez você não precise começar lendo mil livros. Para poder escrever um livro, tem que escrever. E se quer fazer música, por favor não deixe de compor!

Para não deixar o post sem sons, e com o intuito de botar uma lenha na discussão, olha só essa composição que fiz com alguns alunos em um projeto de criação coletiva, utilizando somente folhas de papel:

Bruno Angelo

 

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