por Vladimir Alexandro Pereira Silva1
As evidências nos mostram que apesar do fenômeno sonoro ser constante em (quase?!) todas as sociedades do planeta, podemos dizer que cada cultura trabalha – ou já trabalhou – com algum (ns) parâmetro (s) do som de modo diferente priorizando, muitas vezes, um ou mais parâmetros, em detrimento de outros.
A divisão cronológica da história em categorias distintas que incluem períodos é, antes de mais nada, um recurso metodológico utilizado com o objetivo de sistematizar e esquematizar os princípios estéticos, estilísticos e filosóficos, a teoria e as características gerais das obras de um determinado momento, da vida de um compositor ou de um povo em particular. A sociedade é dinâmica e a cultura, enquanto representação do saber de um povo, reflete este movimento através de um processo contínuo de (re) criação dos seus objetos. Sendo assim, todo patrimônio artístico traduz, em maior ou menor grau, a correlação existente entre o artista e a contemporaneidade do seu contexto o que impossibilita delimitar e caracterizar com precisão o começo e o fim de um momento histórico, bem como a reciprocidade das influências recebidas ou exercidas. Este conflito entre o novo e o velho, o universal e o particular, o rural e o urbano, o popular, o folclórico e o erudito se acentua à medida que buscamos estudar os comportamentos sonoros das sociedades ditas civilizadas cujo processo de desenvolvimento ocorreu – ou ocorre – através do contato com outras culturas e da amalgamação de valores e dogmas.
Tomando como ponto de partida a existência de pluralidades lingüísticas musicais e considerando o sincretismo cultural que marcou a nossa colonização, poderíamos nos perguntar: como estão organizadas e quais são as características das melodias folclóricas brasileiras e, mais especificamente, nordestinas?
Qualquer estudo que se proponha a responder tais questões deve envolver a pesquisa da música dos povos que participaram deste processo de miscigenação e esta tarefa é muito ampla implicando inevitavelmente uma incursão em áreas distintas do conhecimento musical tais como a musicologia e a etnomusicologia. Uma vez constatada a dimensão do tema que propomos pesquisar, delimitamos este ensaio a uma revisão bibliográfica cujo objetivo é explicitar como os pesquisadores têm estudado algumas das estruturas modais presentes na música brasileira para, desta forma, condensar informações que permitam subsidiar teoricamente a execução de obras com tais características.
Baseados em Wisnik (1989:65), que considera as escalas enquanto paradigmas construídos artificialmente pelas culturas, e das quais se impregnam fortemente, ganhando acentos étnicos típicos, iremos explorar este território, esta paisagem sonora em busca do ethos da nossa música.
Tudo nos leva a crer que a nossa cultura musical é resultante da miscigenação de três etnias diferentes: o índio (nativo), o branco (europeu) e o negro (africano). O processo de colonização do território brasileiro favoreceu a chegada dos europeus e africanos, e a confluência das três culturas pode ser percebida, de modo geral, em muitos aspectos da vida cotidiana e também em algumas manifestações sonoras-musicais como, por exemplo, nas melodias modais, nas brincadeiras e canções infantis, nas festas e danças populares, na performance de alguns instrumentos musicais e na organologia.
As opiniões em torno das contribuições específicas de cada grupo étnico na consolidação dos valores musicais e culturais são divergentes e evidentemente excluiu-se deste ensaio a pretensão de discuti-los. A omissão dos conflitos existentes na relação colonizador versus colonizado reflete uma concepção linear dos fatos históricos revelados, neste caso, na abordagem do nativo enquanto elemento passivo e assimilador dos valores externos. Autores como Souza (1959) e Andrade (1963) relatam que os índios brasileiros, num estágio de “primitivismo cultural”, por intermédio do contato com os missionários e jesuítas, adquiriram o conhecimento europeu seiscentista. Este saber, prontamente incorporado às práticas cotidianas, é relatado por Mello (1947:21) quando faz referência aos
padres Nóbrega, Anchieta e Álvaro Lobo que, testemunhando nos exemplos de Navarro o poder da música sobre os indígenas, nunca deixaram de se acompanhar em suas missões por um grupo de crianças domesticadas (o grifo é nosso), as quais quando eles se aproximavam de alguma aldeia selvagem, mandavam adiante com crucifixos na mão, cantando ladainhas e benditos.
Se, por um lado, Alvarenga (1982:13) afirma que nos tempos do Brasil Colônia cada um dos elementos étnicos que concorreram em maior parte para a constituição do povo brasileiro possivelmente fazia sua própria música, por outro podemos dizer que as técnicas e procedimentos que os colonizadores utilizaram na “educação musical” dos nossos primeiros habitantes variaram muito, abrangendo desde o ensino dos instrumentos, melodias gregorianas, formação de corais até a encenação dos dramas religiosos.
Ora, os europeus prevalecendo-se de toda a supremacia dos recursos físicos e materiais e carregados de toda a filosofia estética e moral tanto da Idade Média quanto do Renascimento, impuseram os seus princípios e, segundo Tinhorão (1972:11),
com o aprendizado desses instrumentos a estrutura natural da música dos indígenas, baseada em escalas diferentes da européia e, portanto, geradora de um esquema harmônico totalmente diverso, perdia sua razão de ser, reduzindo-se o som original da música da terra à marcação de um ou outro instrumento de percussão, ainda permitido no acompanhamento de uma poucas danças julgadas inofensivas pela severa censura dos jesuítas.
A concepção que mostra a absorção dos valores musicais europeus por parte da sociedade ameríndia brasileira é questionada por Veiga Jr. (1982:12) ao afirmar que
assim como a religião, através da amalgamação com crenças dos nativos ou trazidos da África, a música européia também se tornou abrasileirada. A amalgamação musical inclui a transferência de instrumentos entre grupos lingüisticamente distintos. A harpa tornou-se nbaracaguaçu, o mestre de capela tornou-se mboraheii, o músico bem treinado tornou-se mborahei rehe ecatubae. O canto gregoriano tomou o nome de Tupa upë porahei taba, o coro musical o nome de mborahei apita e o mestre cantor o de nheengaraiba. O assobiador tornou-se tomunhengoére.
O sincretismo cultural, entretanto, não ficou restrito ao contato entre os portugueses e os índios. Vários outros tipos são identificados e neste panorama Alvarenga (1982:20) observa, a par da diversidade rítmica, instrumental e coreográfica, a presença de escalas sem sensível, pentatônicas, hexacordais ou com o sétimo grau abaixado, além da cadência onde a tônica é alcançada por um movimento de notas rebatidas, partindo da mediante.
Nesta conjuntura é importante ressaltar também alguns traços marcantes que apontam para uma influência oriental na música folclórica brasileira. Tais características podem ter sido herdadas das tradições ibéricas refletindo, assim, as conseqüências da convivência entre espanhóis, portugueses e povos do oriente. Na história da música ocidental, Abraham (1979), Cawdell (1984) e Reese (1989) relatam o intercâmbio existente entre a cultura greco-romana e os povos de culturas orientais, seja com o intuito de esboçar fundamentos teóricos para a música, seja para relacionar, dentre outros aspectos, o começo do canto sagrado cristão com a expansão de algumas tendências oriundas do canto mozárabe e bizantino.
Com o objetivo de explicar as origens árabes no folclore do sertão brasileiro, Soler (1995:74) demonstra que as semelhanças existentes entre nossas práticas poético-musicais e aquelas de tradição ibéricas, estão inseridas num contexto no qual os fatores sociais, culturais e religiosos foram determinantes. No seu ponto de vista, os povos que foram recrutados para povoar as terras do Novo Mundo não se encontravam entre as camadas que podiam estar impregnadas do espírito renascentista. Ao contrário, era uma população soldadesca, de camponeses e pequenos comerciantes onde predominava o espírito medieval com suas lendas, suas crendices e seus mitos, seus hábitos, sua tábua de valores humanos e morais, suas rústicas diversões e suas artes despretensiosas, o que o leva a concluir que nada do que estava acontecendo na Europa renascentista afetava as tradições hispano-arábico-judaica arraigadas há séculos.
De fato, o parentesco existente entre ocidente e oriente se manifesta na música brasileira de forma evidente e autores como Brandão (1971), Andrade (1989) e Cascudo (1993) citam, dentre outros exemplos, o aboio, chegando a fazer comparações com formas similares encontradas na África Muçulmânica entre os vaqueiros do Nordeste e os negros peuhls do Sudão e suas técnicas de sugestão através do canto sobre o gado. Ao falar do aboio cantado, Cascudo (1993:05) assegura que essa modalidade, de origem moura, berbere, da África Setentrional veio para o Brasil, possivelmente da Ilha da Madeira, dos escravos mouros aí existentes.
É claro que nossas tradições musicais guardam heranças que atravessam séculos, geração após geração, sendo transmitidas, muitas vezes, pela cultura oral, formando um patrimônio multifacetado. Neste sentido, ao concluirmos esta perspectiva histórica cremos ter apresentado algumas diretrizes que, se não permitem uma concepção pormenorizada da música folclórica brasileira, podem contribuir fazendo um mapeamento em busca das suas origens.
Melodias modais – esboço de um conceito
Várias tentativas de estudo e caracterização da música folclórica brasileira já foram realizadas. Contudo, muitos dos empreendimentos desenvolvidos tentaram abordar o assunto na sua totalidade e por isto se mostraram insuficientes devido a grande extensão territorial do Brasil, suas múltiplas contextualizações e conseqüentes variantes musicais. Mas, apesar das lacunas existentes podemos traçar algumas características no tocante as nossas constâncias musicais2 tomando como base o pensamento de Souza (1966), Lacerda (1966), Béhague (1980) e Lamas (1992).
Estes autores mostram que a música folclórica brasileira pode ser caracterizada pela existência de melodias compostas por graus conjuntos. A extensão fica quase sempre no âmbito de uma 8ª e a constituição escalar abrange modos gregos-medievais e derivados, escalas maior e menor (padrão clássico tonal), formações penta e hexacordais, sem falar que no modo menor, os intervalos de 2ª e 4ª aumentada são mais freqüentes em sentido descendente, direção que também é usual nos incisos e cadências finais que podem concluir sobre a mediante ou a dominante. Quanto ao aspecto rítmico, são evidenciados compassos simples e compostos, além da existência de grupos marcantes como aqueles provocados pela síncope e a hemíola. No cancioneiro infantil, nas músicas com função litúrgica e de culto e nos cantos de danças, no que diz respeito ao plano formal, há predominância de períodos com duas ou quatro frases, simetria e regularidade dos padrões baseados na estrutura verso/refrão, com a possibilidade de variação nos versos. As estruturas rítmicas mais livres aparecem nas formas poético-musicais numa espécie de recitativo. O ambiente harmônico é marcado pelo paralelismo polifônico em terças e sextas – algumas vezes em quartas e quintas – e o uso de uma progressão harmônica diatônica fundamentada na relação tônica (subdominante) dominante.
Na pesquisa desenvolvida por Oliveira (1986), são apresentadas tabelas contendo os resultados das análises voltadas à descrição dos elementos freqüentes na música folclórica baiana. Tomando como material de estudo 56 canções, incluídas em quatro categorias diferentes (canções de trabalho, de danças, religiosas e de jogos), e mesmo considerando que a pesquisa tenha sido atomizada às canções da Bahia, as conclusões apresentadas quanto as ocorrências de tempo, textura, ritmo, extensão e direção melódica, estrutura formal, modos e escalas, reforçam os traços pertinentes expostos anteriormente.
O perfil que estamos traçando até o presente momento serve apenas como panorama geral do repertório musical popular. O tema deste ensaio é o universo melódico modal e, por isto, abordaremos inicialmente a escala pentatônica.
O trabalho de Paz (1989), que culminou com a coleta de canções folclóricas de vários estados brasileiros, faz referência aos modelos de escalas pentatônicas, tanto maiores quanto menores, como fontes extraídas da música de origem afro-brasileira e, mais especificamente, afro-baiana. Ao explicitar tal aspecto, a autora confirma as conclusões de Merriam3 a respeito da influência da música africana na música brasileira, pois
as canções baianas (98 cantos entre os 642 gravados por Melville e Francis Herskovits em 1941 – 1942 em Salvador) exibem as cinco características da música da África Ocidental observadas por Waterman (senso metronômico, importância da percussão, polimetria, pergunta e resposta, e fraseado em contratempo); não há dúvida que a música foi decididamente originária desta fonte.
Guerra Peixe (1980:111) também identifica algumas destas características no folclore pernambucano onde a metade das melodias do Maracatu Elefante são pentafônicas, e outro tanto, compõe-se de cantos hexacordais e heptacordais. Se buscarmos alguns dos traços marcantes da elaboração mélica na música africana, podemos utilizar as contribuições Ribeiro (1973) que indica a existência de variações intervalares na construção das escalas tetra, penta e hexatônicas, cujos intervalos abrangem micro tons, segundas e terças maiores e menores – vide exemplo 01.
Voltando a questão da escala pentatônica e constatando que ela é uma manifestação sonora tão comum e presente em espaços diacronicamente opostos, recorremos ao pensamento de Stuckenschmidt4 sobre a existência de arquétipos e de um inconsciente coletivo em música. Mesmo que tais formulações sejam meras especulações, como explicar o porquê de tantas culturas construírem seus universos sonoros em torno deste padrão escalar?
As explicações oscilam indo do plano especulativo aos argumentos mais estruturalistas como aquele apresentado por Tacuchian (1994-95) no qual ele faz um paralelo entre a escala pentatônica, as leis da seção áurea e a série Fibonacci, com a teoria da simetria. De acordo com o seu estudo
[a seção áurea] é uma proporção tal que, dividido o todo em duas partes, a parte maior está para a menor na mesma razão que o todo está para a parte maior.
A seção áurea está presente na série de Fibonacci com aproximação para números inteiros onde cada número é a soma dos dois anteriores: 1, 2, 3, 5, 8, 13… Se verificarmos qualquer conjunto de três números seguidos, constataremos que eles guardam entre si uma relação de seção áurea, aproximada para números inteiros. Assim, 3/2 = 2/1 5/3 = 3/2 8/5 = 5/3 13/8 = 8/5 etc. Os números da série de Fibonacci são encontrados na escala pentatônica, se considerarmos os intervalos representados por números que correspondam à quantidade de semitons de que são formados. Assim, uma 2ª M é representada por 2, uma 3ª m, por 3, uma 4ª J por 5 e uma 6ª m por 8.
As escalas heptatônicas encontradas no conjunto das melodias folclóricas são geralmente modelos do padrão maior-menor (clássico tonal) e modos derivados ou semelhantes àqueles da música grega e medieval. Todavia, ao falar da estrutura melódica e escalar dos desafios e emboladas5, Béhague (1973) constata que além de encontrarmos melodias nos modos lídio e mixolídio é possível identificarmos um modo artificial (o grifo é nosso) formado por uma escala diatônica com o quarto grau elevado em um semitom ascendente e o sétimo grau abaixado em um semitom descendente.
Em contrapartida, Siqueira (1981) explica a existência deste modo artificial por dois caminhos diferentes: o primeiro, como uma conseqüência da prática medieval de evitar o trítono – diabolus in musica – implantada aqui por intermédio dos jesuítas que teriam determinado o abaixamento do 7º grau ou a elevação do 4º grau6. O segundo, como um aspecto físico-acústico, ou seja, os modos são desdobramentos da série harmônica (harmônicos 7º e 11º) – vide exemplo 02.
A despeito das divergências existentes, é importante ressaltar a comparação que Siqueira (1981) faz entre os modos gregos, nordestinos e medievais – vide exemplo 03.
A respeito do sistema modal na música folclórica brasileira Siqueira (1981:9-10) ainda chega a afirmar que este destruiu, por completo, o princípio da tonalidade clássica e a partir desta constatação desenvolve uma série de procedimentos harmônicos nos quais:
a) as escalas maiores ou menores, diatônicas ou cromáticas são substituídas pelos três modos reais ou derivados;
b) os nomes tradicionais de tônica, supertônica, mediante, sud-dominante, dominante, super-dominante e sensível desaparecem e são substituídos por 1º, 2º, 3º, 4º, 5º, 6º e 7º graus, respectivamente;
c) os intervalos não sofrem qualquer alteração;
d) os acordes passam a ter as seguintes classificações: acordes de duas notas, três, quatro, cinco, seis, sete e oito notas, etc… Não haverá mais acordes de 7ª da dominante, 7ª da sensível maior ou menor e a 9ª da dominante, maior ou menor, visto terem estes títulos e funções desaparecido. Dessa maneira, o acorde passará a definir-se assim: reunião de duas notas ou mais notas ouvidas, simultaneamente. A hierarquia total desaparece. Pode-se começar ou terminar a música com qualquer acorde;
e) os encadeamentos ou são livres ou podem obedecer à forma clássica, desde que sejam praticados dentro dos modos;
f) as cadências harmônicas são suprimidas; qualquer acorde servirá para terminar um membro de frase, uma frase ou período;
g) não haverá mais modulação, visto que modular é passar de uma tonalidade a outra, e, neste sistema, não existe tonalidade e, sim, existem modos. As passagens de um modo para outro denomina-se transporte ou mudança.
Retornando à questão dos modos com o 4º e o 7º graus alterados, Tacuchian (1994-95) evidencia este padrão escalar na obra de Béla Bartók e também em outras melodias folclóricas da Europa Central e da Ásia, pondo em questão o argumento de Siqueira (1981) que reside no fato de afirmar que estes modos são tipicamente nordestinos. Por outro lado, é importante ressaltar as opiniões de Batista Siqueira e Guerra Peixe7 que definem as melodias modais encontradas na nossa música enquanto estruturas autóctones. Mesmo considerando que as melodias sejam eufonicamente iguais aos modos eclesiásticos, os referidos pesquisadores evitam classificá-las de acordo com a terminologia gregoriana, usando, de acordo com Paz (1994:21), as expressões maior com quarta elevada, maior com sétima abaixada, menor sem sensível com a sexta elevada, para indicar os modos lídio, mixolídio, eólio e dórico, respectivamente.
Outra pesquisa desenvolvida por Guerra Peixe (1970), mostra algumas formações modais nas melodias executadas pelas Zabumbas8 que variam de acordo com a construção física do pife – instrumento solista principal neste conjunto musical. As escalas, neste caso, são classificadas pelo âmbito dos sons e disposição dos mesmos, partindo da nota Sol abolindo o sentido de tônica ou nota principal. Ele apresenta três tipos de tons (tom natural baixo, tom natural alto e tom natural misturado) que se diferenciam apenas pelo âmbito; um tom menor, constituído de duas escalas (uma com Si bemol e outra com Fá sustenido); um tom de pistão (escala com Si bemol e Mi bemol) e um tom de clarinete (a escala menor harmônica do sistema clássico com possibilidades de transposição). A construção física do instrumento, o sopro do executante – se mais ou menos intenso – e a utilização da técnica do meio dedo, isto é, o uso parcial de parte de um dos dedos em algum dos orifícios do instrumento, são os recursos utilizados para obtenção dos semitons e a conseqüente cromatização das escalas – vide exemplo 04.
Um outro aspecto importante a ser observado no cancioneiro folclórico nordestino diz respeito a questão do ethos da música modal. Esta palavra tem sido utilizada desde a antigüidade clássica e seu significado foi aplicado à poesia e à música. Contudo, independente das divergências de opinião entre filósofos, o vocábulo sempre esteve associado as conotações extra musicais, expressando uma realidade simbólica. Os gregos atribuíram poderes míticos e místicos à música e, por conta disto, mantinham-na sob um rigoroso controle porque a formação do cidadão e o equilíbrio do Estado estavam diretamente vinculados à música produzida, pois o caráter de cada modo, a sua essência ética e o seu poder educativo seriam capazes de despertar e representar sentimentos distintos e, conseqüentemente, alterar uma realidade individual ou coletiva.
A potencialidade da poesia e da música em descrever, sugerir, induzir ou representar sentimentos, situações e atitudes foi, e ainda continua sendo, associada ao princípio do ethos. Grout e Palisca (1994:21) afirmam que, se para os gregos as melodias que exprimiam brandura e indolência deveriam ser evitadas na educação dos indivíduos que estavam sendo preparados para governarem o estado ideal, só sendo admitidos os modos dórico e frígio, pois os mesmos promoveriam as virtudes da coragem e da temperança, para os músicos medievais e renascentistas esta realidade não foi diferente, ou seja, cada modo continuou a ser portador de uma conotação semântica.
Powers (1980) sintetiza os princípios do ethos na música da Idade Média e do Renascimento e Wisnik (1989:68) ratifica a sua visão ao dizer que
nas sociedade pré-modernas, um modo não é apenas um conjunto de notas mas uma estrutura de recorrência sonora ritualizada por um uso [. . .] As notas reunidas na escala são fetichizadas como talismãs dotados de certos poderes psicossomáticos, ou, em outros termos, como manifestação de uma eficácia simbólica (dada pela possibilidade de detonarem diferentes disposições afetivas: sensuais, bélicas, contemplativas, eufóricas ou outras). Esse direcionamento pragmático do modo (que se consuma no seu uso sacrificial ou solenizador), já está geralmente codificado pela cultura, onde o seu poder de atuação sobre o corpo e a mente é compreendido por uma rede metafórica maior, fazendo parte de uma escala geral de correspondências, onde o modo pode estar relacionado, por exemplo com um Deus, uma estação do ano, uma cor, um animal, um astro.
Estas características encontradas seja na música da África, da Ásia, da Índia ou das Américas, sob o signo de raga, maqãm, patet, chõshi ou qualquer outra designação, revelam particularidades de uma relação transcendental e simbólica fundamentada em valores cristalizados no seio de cada etnia e isto pode ser ratificado no pensamento de Béhague (1973:19) para quem o timbre, a intonação, a entonação vocal e a forma como a voz humana é usada são marcos fundamentais numa cultura e tendem a ser mantidos por toda a variedade de formas, escalas, modelos rítmicos e gêneros no seu repertório.
E no nosso caso? Quais seriam as particularidades que permitiriam caracterizar o ethos da música folclórica nordestina?
Os temas e as formas que compõem nosso cancioneiro são variadas e traduzem as facetas de uma realidade psico-social pluralizada. Lacerda (1969:85) fala da doçura e suavidade das terças como sendo um reflexo da psicologia caipira, uma espécie de tristura fatalista, que às vezes se sublima no que se poderia chamar de integração cósmica, profundamente mística, ao mesmo tempo que Andrade (1962) nos chama a atenção para a necessidade de preservar a imagem vocal nasalizada, tipicamente brasileira e tão acentuada no Nordeste, pois a forma como cantamos é expressiva e não só gradua seccionadamente o semitom por meio do portamento arrastado da voz, como, às vezes, se apoia positivamente em emissões cujas vibrações não atingem os graus da escala.
Além dos aspectos apontados anteriormente, devemos registrar também a presença do pedal harmônico que em conjunto com outras persistências rítmicas e melódicas serve como elemento fundamental na obtenção de um certo clima místico que favorece, através do movimento corporal e da dança, o transe e a comunicação com divindades superiores. Esta atmosfera é encontrada, sobretudo, nas manifestações sonoras com função litúrgica e ritualística pelo Nordeste brasileiro.
Considerações finais
É certo que as respostas a respeito da nossa identidade musical não serão encontradas no momento, pois extrapolam os limites deste trabalho – restrito exclusivamente ao aspecto literário, desconsiderando, portanto, a vivência, análise e coleta de campo, procedimentos essenciais quando o objeto em estudo envolve a música produzida coletivamente, cujos traços marcantes são os improvisos, as transformações e variações a cada execução.
As obras consultadas, na sua grande maioria, tratam o assunto de forma generalizada, abordando simultaneamente aspectos literários, musicais, coreográficos e organológicos, predominando uma linearidade que denuncia a carência de obras críticas, seja do ponto de vista historiográfico, seja quanto ao aspecto técnico e estrutural. Todavia, a revisão desta bibliografia evidencia informações pertinentes, ao mesmo tempo, que ressalta aspectos que precisam ser abordados com mais profundidade e consistência como, por exemplo, a necessidade de unificar a terminologia utilizada para designar e classificar os modos gregos, medievais e brasileiros, a conceituação de modo e escala e uma abordagem mais profunda dos fatos históricos e sociais que, com toda certeza, podem ter importância mais significativa no processo de explicação da modalidade na música nordestina e suas implicações na construção do repertório brasileiro.
1 Regente, pesquisador, professor da UFPI e mestrando em Execução Musical pela UFBA com área de concentração em regência coral. (Voltar ao meu texto)
2 Constância musical é um elemento que aparece com regularidade na música popular de uma nação e que reflete um dos aspectos do pensar musical dessa mesma região (Lacerda, 1966:67). (Voltar ao meu texto)
3 Apud Veiga Jr. (1983:13). (Voltar ao meu texto)
4 Apud Tacuchian (1994-95:10). (Voltar ao meu texto)
5 Lamas (1987) e Cascudo (1993) mostram que esta forma poético-musical é descendente da Idade Média onde os trouvères e troubadours desenvolveram tipos semelhantes com o nome de disputa, tenson e jeux-partis, com características idênticas àquelas encontradas na nossa região, isto é, diálogos cantados numa métrica quase livre e prosódica, ao som de alaúdes ou violas. Grout e Palisca (1994:87), complementam e indicam que o tratamento melódico das canções era geralmente silábico, com algumas figuras melismáticas, ornamentos e modificações de estrofe para estrofe, acentuando o caráter de improvisação marcado pelo uso do 1º e do 7º modos e seus respectivos plagais. (Voltar ao meu texto)
6 É com esta fundamentação histórica que ele associa a origem dos dois modos brasileiros (o primeiro com o 4º grau elevado e o segundo com 7º grau rebaixado), identificando o terceiro modo como o resultado da junção do dois primeiros. (Voltar ao meu texto)
7 Apud Paz (1994:21). (Voltar ao meu texto)
8 Zabumba é uma banda constituída por duas flautas de bambu, bombo e tarol. Esta denominação, segundo o pesquisador, é bastante usual nos estados do Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco e Alagoas. (Voltar ao meu texto)
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Copyright Vladimir Alexandro Pereira Silva – Todos os direitos reservados
Vladimir Alexandro Pereira Silva nasceu em Campina Grande, Paraíba. Desde 1986 é regente de coro e já criou e dirigiu vários grupos, a exemplo do Grupo Vocal Nós em Voz (Campina Grande/PB – 89/92), o Coral Universitário da Paraíba “Gazzi de Sá” (João Pessoa/PB – 89/90), o Madrigal Vox Popvli (Teresina/PB – 94/95), o Madrigal da UFBA (Salvador/PB – 97), o Coro em Canto da Universidade Federal da Paraíba (Campina Grande/PB – 97) e o Madrigal Vox Nostra (Campina Grande/PB – desde 1994).
É graduado em Licenciatura em Educação Artística (Música) pela UFPB Campus I. Estudou composição com José A. Kaplan e Eli-Eri Moura durante dois anos. Realizou cursos de regência, técnica vocal e canto promovidos no Brasil e no exterior, oportunidades nas quais estudou com professores como Nelson Mathias, Gisa Volkman, Lúcia Passos, Gerard Kelgman (Alemanha) e Homero Magalhães Filho (Brasil/França). É aluno de canto do professor Jasmin Martorell, com o qual realizou curso de aperfeiçoamento no Conservatório Nacional da Região de Toulouse (França) ao longo de 1998.
Além destas atividades, Vladimir Alexandro é professor convidado dos cursos de Pós-Garduação Lato Sensu da Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa/PB e da Universidade Regional do Cariri, Crato/CE; é Mestre em Música (Execução Musical – Regência Coral) pela Escola de Música da Universidade Federal da Bahia e é docente do Departamento de Educação Artística da Universidade Federal do Piauí, onde atua lecionando disciplinas no curso de música.