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(post da série O meu jeito de compor – clique para ver a série completa)
Bem, suponhamos então que um processo de reflexão já pôs em marcha as ideias fundamentais da composição que está por vir. É o que eu chamo de estar em modo composição, ou seja, manter-se num fluxo de pensamentos e prospecções sobre o som que se quer modelar. Sente-se que tudo está em movimento e, mesmo quando se vai tomar banho ou se sai para comprar comida, fica-se ruminando ideias. Acima de tudo, fica-se coçando para criar música. Esse é o sinal ineludível para que se ponha a mão na massa. Mas como começar efetivamente a compor?
Aqui, é importante considerar um fator ontológico determinante para a música: o tempo. Se você está desenhando, criando um website, esculpindo ou mesmo organizando sua casa ou alguma coisa, tem o seu objeto à frente o tempo todo. Quando altera alguma coisa (digamos, quando acrescenta um traço ou muda um móvel de lugar na sala), o faz com uma consciência imediata do todo de sua arte. Com a música, assim como com outras artes do tempo (como um filme, por exemplo), isto não é bem assim. Aquilo que você acrescenta não está na sua frente, está atrás de você. Para usar os conceitos habituais do tempo, pode-se dizer que a composição musical lida com passado (memória) ou futuro (expectativa), e não com o presente (a não ser em um sentido figurado, mas isso já seria outro assunto). Você não pode ter toda uma música à sua frente, certo? Ela só existe como algo que vai se desenrolando no tempo.
Desde a perspectiva da composição, a única forma de ver a música como um todo é através da prospecção, isto é, do pensamento voltado para o futuro. Você imagina o que vai acontecer e estabelece como a coisa começa, como se desenvolve e como termina. Isto é o que chamamos de planejamento pré-composicional. Algumas pessoas são bem detalhistas na pré-composição, estabelecendo grupos de notas a serem utilizados (que em musiquês chamamos modos), instrumentação, número de seções e mesmo suas durações. Dependendo do nível de detalhamento, precisa-se mesmo lançar mão de recursos visuais ou matemáticos para planejar, fazendo gráficos, calculando proporções entre seções, etc. Um planejamento se faz muito necessário, por exemplo, quando você vai criar uma música para um vídeo que já existe, como no caso de uma trilha sonora para cena de filme. Mas, de modo geral, o nível de detalhamento no planejamento pré-composicional varia de acordo com a personalidade de quem compõe.
Eu sou daqueles que preferem trabalhar a partir de sons já compostos, isto é, com pouco detalhamento no planejamento pré-composicional. Para colocá-lo de forma direta, não costumo bolar gráficos nem pensar para onde a música vai antes de começar a criar essa música, mas esses fatores podem variar a cada projeto. Uma possível desvantagem de um planejamento vago é a sensação (nada boa) de se estar perdido durante o processo criativo, isto é, sentir que a música que está saindo não tem nada a ver com as reflexões que a puseram em marcha, ou que não sabemos para onde estamos indo. A grande vantagem de se compor com pouco planejamento é poder criar em cima daquiles sons que você já inventou, e não em cima daqueles que prevê inventar. Não é preciso ser especialista em acústica para saber que o som é um fenômeno extremamente complexo. Um planejamento pré-composicional, por mais detalhado que seja, jamais poderá dar conta dessa complexidade. Se você planeja com muitos detalhes, naturalmente vai tentar pôr em prática esse plano durante a criação dos sons, e esse esforço pode torná-lo “surdo” para diversas possibilidades sonoras e conceituais que surgem no caminho e não haviam sido previstas de forma alguma. Enfim, creio que essa questão não se resume em planejar tudo ou não planejar nada, mas sempre em alguma coisa no meio desses dois extremos. Mesmo não sendo um exímio planejador pré-composicional, tenho sempre comigo meu caderninho de notas, onde vou registrando e desenhando ideias durante o processo composicional, e isso é também uma forma de planejamento.
Vamos então aos dois exemplos de minhas composições e seus planejamentos. Como deixei dito na introdução a esta série de posts sobre meu processo composicional, meus exemplos não são receitas para ninguém, e tampouco vou embelezar meus métodos, pintando-me como gênio que extrai sua música do coração, em um ato apaixonado de escrita. Não. Serei bem franco e tentarei não falhar na sinceridade, apontando inclusive as coisas que fiz de forma acidental.
É uma peça para orquestra de câmara, mais antiga, de meus tempos de graduação. O professor disse: façam uma música baseada em literatura. Depois de um tempo perdido em leituras variadas, escolhi esses versos de Luís Miguel Nava:
A pedra, digo, cai no ventre
da água como um punho
– agora está no fundo dessa imagem
Minha ideia foi fazer esse impacto da pedra na água com música. Para isso, planejei arrancar com um impulso que, com o passar do tempo, fosse amainando. A imagem que eu tinha era a da superfície de um lago. O impacto da pedra sobre a água seria o início da composição, bruto e cheio de movimento. Aos poucos, as ondas geradas ficariam cada vez mais fracas, até que o lago voltasse ao estado original. Com essa definição, planejei o impacto que está nos primeiros compassos da peça, e esse planejamento foi bem estrito: (passo 1) sentei ao piano e bolei uma sequencia de acordes com uma sonoridade que me parecesse dura, com dissonâncias marcantes e notas espalhadas pelos registros grave, médio e agudo. (Passo 2) Decidi de antemão arpejar esses acordes com velocidade rápida e constante, dando um ar mecanizado e impassível a essa abertura. (Passo 3) Também decidi quebrar a regularidade na sucessão de acordes: em vez de fazer tudo em grupos de quatro, resolvi alternar entre grupos de 2, 3, 4 e 5 notas (por isso tive que usar essas fórmulas de compasso esdrúxulas na partitura). Desta forma, a troca dos acordes fica imprevisível, o que dá uma intensidade maior ao caos desse começo.
Esse começo, e o subsequente arrefecimento gradativo da música (sempre de acordo com a imagem do lago) foi tudo o que planejei antes de começar a compor. Não sabia como iria continuar ou terminar, nem o que aconteceria quando as águas do lago voltassem ao estado inicial. A sequencia da composição aconteceu assim: quando cheguei nas “águas calmas”, por assim dizer, resolvi fazer uma seção com o naipe de cordas, que até então fora subutilizado. E no meio do caminho me surgiu a ideia inserir na música uma citação de uma célebre melodia do compositor francês Olivier Messiaen. Trata-se do início de sua peça Louange a l’Eternité de Jésus (Louvor à eternidade de Jesus), quinto movimento do Quatuor Pour la Fin du Temps (Quarteto para o Fim do Tempo). Essa melodia, tocada originalmente no violoncelo, é extreeeeeemamente lenta, com acompanhamento do piano em acordes que vão se repetindo periodicamente. Ao escutá-la, temos uma impressão muito forte sobre essa ideia de eternidade, que Messiaen, como bom católico, associou a Jesus Cristo. Se ainda não a conhece, pegue seus melhores fones e escute por você mesmo, pois vale pena:
Essa citação, que aparece ao final da seção de cordas na minha peça, viria a ser essencial para o restante da música e, mais importante, para o conceito geral do trabalho. O próprio título, “Eternidade à Deriva”, surgiu daí. Com isso se vê que a ausência de um planejamento prévio sobre o final da peça deixou um caminho aberto durante o processo de composição, que afinal foi sendo imaginado no andar da carruagem, através de uma série de associações feitas entre a música que já havia sido composta, o poema de Nava e coisas que apareceram no caminho, como a composição de Messiaen e sua ideia de eternidade. Eu gosto dessa sensação de junção de coisas através da composição musical, quando você vai compondo e associando textos, ideias, vídeos e fatos, todos eles não planejados. De certa forma, quando isso acontece, sinto que estou no caminho certo, pois a composição realmente me aparece como algo vivo e interativo.
Minha ideia para o final veio depois de introduzir a citação do Messiaen: ao contrário do que acontece na peça citada, resolvi mexer nos tempos entre os acordes do piano. Com esse deslocamento, a ideia de estabilidade eterna foi dinamizada, e aí comecei a inserir os demais instrumentos, que vão preenchendo e intensificando a textura das cordas. Essa eternidade falha, que afinal se move e está sujeita também ao tempo, é o que me fez colocar o à Deriva no título, como sinalizador de nossa impossibilidade de atingir o eterno, isto é, de suplantar o Tempo – confesso que essas coisas também foram influenciadas pelo livro XI das confissões de Santo Agostinho, que, à reboque do Messiaen, comecei a ler nessa época. A música termina se movendo de novo, até atingir um ponto culminante e fincar pé no acorde inicial do Messiaen, mas finalmente afundando e esmorecendo para sempre, e aqui fica notável essa imagem trazida pelo último verso de Nava, aquela da pedra no fundo da água. Será para sempre?
Imagine que você acaba de ganhar a oportunidade de escrever uma música para um grupo do qual você é fã de carteirinha. Eles já se comprometeram a tocar a sua peça, você só precisa criar e enviá-la. Que chance, certo? E ao mesmo tempo: que responsabilidade! Foi isso que me aconteceu quando o Festival de Inverno Campos do Jordão me encomendou um quarteto de cordas, para ser tocado pelo Quatuor Diotima. Eu acompanho o trabalho desse quarteto há anos, escutando-o pelas rádios e em diversas gravações que rolam na internet. Essa foi uma peça que me exigiu muita preparação, pois realmente tinha medo de não suprir as expectativas da ocasião – tanto minhas quanto dos outros envolvidos. Escutei e analisei kilos de música para quarteto de cordas, e fui anotando informações sobre técnicas e notações que me pareciam interessantes. Mas, na hora de pensar a música, de planejar como seria e que coisas teria, não conseguia sair do lugar. Acima de tudo, tendo a oportunidade de escrever uma peça para um grupo tão excelente, tinha vontade de colocar tudo o que podia imaginar na peça, numa experimentação sem limites.
Depois de muitas ideias começadas e abandonadas, resolvi chutar o balde. Mandei o planejamento às favas e simplesmente comecei a escrever música, direto do compasso um e seguindo em ordem pra frente. Eu não tinha a menor noção do que viria pela frente, é como começar a escrever uma história sem ter uma história, embora isso seja mais comum do que se imagina no meio literário. Você escreve uma frase inicial, tipo
João despertou sem fome, mas passou o café mesmo assim, atravessado constantemente por flashes de memória da noite passada.
Mas na real você ainda não tem a menor ideia de quem é esse João, nem do que teria acontecido na noite anterior. É mais ou menos assim que comecei a música, e essa atitude se manteve do começo ao final da obra. Eu compunha um trecho, deixava a sua energia crescer e chegar a algum lugar. Então parava e pensava: o que poderia acontecer agora? Eventualmente alguma ideia interessante surgia e eu a punha em prática, e assim sucessivamente. Para não dizer que não planejei absolutamente nada, comento que estabeleci desde o início que, dada a minha abordagem exploratória sem noção nesta peça, eu deveria cuidar muito para que o fluxo de música fosse constante, isto é, que uma coisa sempre se transformasse na outra, sem cortes – isso foi fundamental para não se ficar com uma peça que parece um retalho incongruente de peças menores.
Esta não foi a primeira vez que fiz música desse jeito, mas certamente foi a mais arriscada. Quando você liga duas coisas na vida, precisa pô-las em equilíbrio, dar-lhes coerência e respeitar sua energia. Naquela história do João acordando, por exemplo, poderíamos colocar na frase seguinte uma Maria. Porém, se fizéssemos isso, não poderíamos depois abandonar a Maria. Teríamos que dar sentido e importância para a sua presença na história, ela precisaria tomar ações, interagir com o João. E isso tudo teria que estar amarrado de alguma forma com o prosseguimento da história.
Na medida em que mais coisas vão sendo acrescentadas à história, essa necessidade cresce exponencialmente. É por isso que não seria adequado dizer que compus Passagio sem planejar, pois a cada novo passo dado, precisava equacionar tudo o que acontecera antes, e por isso era obrigado a pensar no que aconteceria mais adiante, ainda que me mantivesse no propósito de seguir sempre transformando a música. Até hoje não me convenço plenamente de que essa equação foi efetiva. Por alguns momentos, acho que a peça é um vendaval de ações nem sempre coerentes; por outros, me agrado com essa música fugidia, que nunca termina de se estabelecer em nenhuma parte, e termina ido embora. Se quiser, tire suas próprias conclusões:
No próximo post, a pergunta que nos guiará é: música é feita com o quê?
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